18 de Outubro de 2024
A ligação veio às duas da tarde.
Uma sexta-feira chuvosa, dessas em que o guarda-chuva pesa mais do que protege.
Eu estava numa conferência em Vancouver.
Palestras, painéis, gente sorrindo como se todo mundo tivesse entendido o roteiro da própria vida.
“Decidimos encerrar aqui.”
Fechei o laptop. Não tinha mais motivo pra ficar. Saí andando.
Quase uma hora de caminhada até em casa. Chuva fina no rosto, tênis encharcado, barulhos de carro no asfalto.
E eu, falando sozinho como um ator sem plateia:
“cacete. acabei de ser demitido.”
Era estranho porque doía e, ao mesmo tempo, soava previsível. Um soco na costela que já vinha sendo anunciado.
próximo passo
Nos dias seguintes, mergulhei no manual invisível que todo desempregado recebe sem querer: revisar currículo, aplicar, aplicar, aplicar.
Entrevistas, dinâmicas, cases. Promessas que pareciam certezas... até não serem.
Cheguei a estar em seis processos seletivos ao mesmo tempo, uma roleta russa de calls no Zoom.
De repente, eu era personagem de um jogo cruel: avança três casas, volta duas, pausa indefinida.
E no meio desse looping, uma pergunta me atravessava em silêncio.
será que é isso mesmo que eu quero?
É curioso como, nas redes sociais, espera-se que a gente transforme cada tropeço em conteúdo inspirador.
“aprendizado”
“open to work”
“grato pela jornada”
"gostaria de compartilhar que estou..."
Mas quem disse que precisamos narrar nossa vida como se fosse reality show?
A economia da atenção sequestrou até a intimidade do fracasso.
Eu não queria fazer parte disso.
Eu não queria “performar resiliência”.
Eu não queria dar satisfação para algoritmos que não me levaria para onde eu queria.
Queria só… andar na chuva. Pensar em silêncio.
uma pista
Meses antes, em abril, eu já tinha deixado escapar uma pista. Numa newsletter, escrevi como me via em dez anos.
E adivinha?
Não havia uma linha sobre tecnologia.
Só café, criatividade, bicicleta, vinil, silêncio. Eu não percebi na hora, mas "já estava escrito."
Alguns meses depois, despretensiosamente minha esposa me deu um presente: um curso de dois dias sobre café.
Ali, entre vapores de espresso e pó grudado nos dedos, a lembrança daquela carta voltou como um sussurro.
Cronômetros substituíram planilhas.
Segundos de extração valiam mais que métricas de engajamento.
O corpo estava inteiro: mãos que tremiam, narizes que aspiravam, paladares descobrindo notas de chocolate ou frutas vermelhas.
E então as coisas começaram a fazer mais sentido. Não como resposta definitiva...
mas como direção
Depois do curso, voltei pra casa com cheiro de café impregnado na roupa, cabeça fervendo de empolgação e uma pergunta martelando:
“e se eu tentasse viver disso?”
Entusiasmado demais? Pretensioso demais? Irresponsável demais?
Talvez. Mas veio com a força de algo inevitável.
Quanto mais eu pensava nos anos que passei em tecnologia, mais percebia: não era só sobre ter perdido um emprego.
Era sobre ter perdido o sentido.
Abri os sites de vagas e, em vez de “product manager”, digitei “café”.
Percebi que, dessa vez, não era sobrevivência. Era escolha.
será mesmo?
Eu não tenho respostas e tampouco a “métrica de sucesso” que provaria para o algoritmo que vai valer a pena, ou que estou tomando a decisão certa.
O que eu tenho é direção, essa sensação de que nem tudo precisa ser dito, postado, performado... e medo.
Mas sigo. Apavorado, não vou negar.
E talvez seja essa a nossa rebeldia mais urgente: retomar o direito de viver sem traduzir tudo em conteúdo e seguir sem olhar para trás ou para o lado.
E, pela primeira vez em muito tempo, isso basta.
Esse e-mail termina aqui.
O resto, é seu.
@paiva // @jppaiva._ // paiva.me