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news.paiva

por Paiva

Sep 14 • 3 min read

fita cassete > wi-fi > IA > ...silêncio?


1997


Outro dia eu ouvi o barulho de uma fita cassete sendo rebobinada com uma caneta BIC.

Não sei de onde veio.

Um vídeo, talvez. Um sonho. Ou memória auditiva fantasma, dessas que aparecem no corpo sem pedir licença.

O som era agudo, seco, quase irritante. Mas eu fechei os olhos e deixei ele ficar.

Na minha cabeça, era 1997. A caneta azul. A fita preta. A ansiedade de gravar o refrão inteiro da música, direto do rádio, sem a vinheta da Jovem Pan no meio.

O cuidado pra não cortar o solo de guitarra. O caderno de folhas pautadas com letras copiadas à mão.

Eu lembro.

vivendo entre dois mundos

Tem uma coisa que me orgulho de ter vivido: ter nascido num mundo sem internet e estar aqui, agora, com inteligência artificial no bolso da calça.

A gente viu o mundo dobrar. E dobrou junto.

Escrevemos cartas. Usamos listas telefônicas. Esperamos dias por uma revelação de filme mesmo sem saber se a foto estava borrada.

Tivemos medo de clicar no LimeWire.
Rebobinamos VHS na unha.
Aprendemos a desenhar no Paint.
Limpamos teclado com cotonete.
Fizemos planos com papel e caneta.
E aprendemos a deletar o histórico do navegador.

Depois veio o Google. O iPod. O Orkut. O Wi-Fi (sim, pasme!). A nuvem. O GPT.

A gente acompanhou tudo. Com o mesmo corpo. Com o mesmo cérebro. Com o mesmo coração.

fui forçado a viver o silêncio


Domingo passado, a news.paiva não chegou. Você talvez nem tenha notado.

Mas eu sim.

Eu não escrevi porque…porque eu precisei não escrever.

Veja bem. Fui demitido no ano passado, depois de quase 15 anos no mercado de tecnologia.

Um ritmo tão acelerado que, às vezes, eu esquecia que tinha corpo. Ou que tinha escolha.

Desde então, o que começou como pausa virou travessia. Um ano inteiro tentando entender o que ficou depois que a pressa saiu da sala.

Silenciar os outros. Escutar a mim mesmo.

E nos últimos dias, depois de tantos altos, baixos, listas, hipóteses, medos, terapia...as peças começaram, enfim, a se mover.

Uma pequena concretude apareceu no meio do nevoeiro. E com ela, um novo rumo.

Mas antes de escrever sobre isso, eu precisei mergulhar de novo.

fundo do poço


Outro dia usei uma analogia que talvez faça sentido aqui:

Quando você está na boca do poço, lá em cima, consegue ver tudo. O céu azul. As folhas balançando. A vida acontecendo. As opções, os convites, as distrações.

Mas, quando você escorrega até o fundo, não vê absolutamente nada.

Só uma luz lá no alto. Um único feixe, apontando numa só direção. E é desconfortável. Muito.

Mas é ali que tudo se revela. Sem barulho. Sem distrações. Sem feed.

Só você, a escuridão, e o que realmente precisa ser feito.

a geração ponte


Tenho pensado muito sobre o que a nossa geração carrega.

Esse lugar entre o antes e o depois. Entre o toque da fita e o clique do algoritmo.

A gente não só viveu a transição. A gente foi a transição.

E agora… agora parece que todo mundo quer nos convencer de que temos que ser nativos de uma nova coisa: IA, cripto, metaverso, whatever.

Mas talvez nosso superpoder seja justamente o contrário.

A lembrança.

A memória do que era esperar. Do que era fazer devagar. Do que era não saber tudo.

Talvez o nosso lugar não seja correr atrás do próximo salto. Mas sustentar esse espaço entre mundos.

Carregar o som da fita junto do som do chip. Pra que a gente não esqueça o que faz a vida valer a pena.

mãos à obra?


Sinto que estou com um pé dentro e outro fora do fundo do poço. Sinto que estou prestes a reaprender a andar.

Sem pressa. Sem metas... Mas com presença.

Trabalhei com tecnologia por quase metade da minha vida. E a tecnologia, de certo modo, trabalhou em mim.

Me ensinou sobre velocidade. Eficiência. Escala.

Mas me cobrou com ansiedade. Comparação. Cansaço. E a criação de um personagem que, em um certo momento, eu não reconhecia mais.

Agora, pela primeira vez em muito tempo, estou tentando algo que talvez soe estranho:

fazer algo com as mãos.

Sim. Começar do zero. Do grão.

Estou me aproximando de uma nova rotina que envolve água quente, gente e conexão.

Ainda não sei o que isso vai virar.

Mas tem cheiro de propósito e gosto de recomeço. Como a soneca da tarde, daquelas que você acorda renovado.

Por enquanto, tudo o que posso dizer é que, se você quiser continuar por aqui, vai ver essa história se desenrolar de perto.

Com o tempo certo. E as pausas certas.

pausa política


Num mundo que corre sem parar, parar é um gesto subversivo.

Num mundo que quer nos ver eficientes, reaprender a sentir é quase um ato político.

Tenho pensado nisso à luz dos últimos dias. De como a brutalidade pode nascer do ruído, do excesso, do algoritmo.

E de como o silêncio, às vezes, pode ser o último espaço seguro pra quem ainda quer pensar por conta própria.

antes de fechar


“Você está feliz?”

Tem algo que você precisa lembrar?

Esse e-mail termina aqui.
O resto, é seu.

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