o cheiro de manteiga às 9h12
O primeiro barulho do dia foi o click da porta automática.
Depois, o sussurro das vitrines abrindo.
Depois, o cheiro.
Manteiga quente tem uma forma de dizer “calma”. Sem palavras. Só cheiro. Eu ainda não sabia, mas aquele seria o idioma do meu dia.
Eu sorri antes de responder. O sorriso foi a resposta.
Cheguei cedo. Até demais, talvez. Ansiedade tem essa mania de adiantar relógios.
Fiquei olhando para a rua ainda vazia, como quem olha para um espelho que não devolve nada. Tênis branco ou preto? Tarde demais.
As mãos já estavam no porta filtro fazendo café.
O gerente me mostrou o mundo comprimido em um balcão de inox: botões, leites, moagens, tickets que não param de nascer.
Concordei como quem entende tudo; e como quem entende nada.
“Flat white to go for Emilie?”
“Americano for Josh?”
a fila longa mudou o ar da manhã
Ela tem um som próprio, quase um instrumento de sopro: respira fundo e, de repente... exige.
Tentei o POS, pronunciei focaccia com cuidado, confundi Pain au chocolat com Pain Suisse e acertei mais do que eu esperava.
Um espresso aqui, uma matcha ali, um pano úmido atravessando a bancada como quem desenha mapas.
As 11h, o mundo acelerou.
Às 14h, o mundo me engoliu.
Sentei. Bebi água. Nem lembrei que não almocei. Olhei para o nada que, naquela hora, era tudo.
Voltei... e terminei.
No caminho de casa, sem energia pra escolher música, deixei o Spotify escolher a playlist por mim.
E já no carro, a pergunta que sempre aparece quando a vida muda o enquadramento:
Eu prometi a mim mesmo escrever sem desculpas, sem "hooks", sem truques. Aqui vai.
o veredito do primeiro dia
Hoje foi meu primeiro dia trabalhando numa cafeteria depois de passar 15 anos sentado numa cadeira atrás de um computador.
Não é um hiato estratégico. Não é uma ponte. Não é um plano B.
É o plano vivo... aquele que só existe quando o corpo participa.
E foi aqui que eu lembrei de uma palavra antiga escondida numa página ainda mais antiga: epifenômeno.
Aquele vapor que não nasce sem água fervendo.
Aquele cheiro de pão que não existe sem forno.
Aquela felicidade que não aparece quando você caça com rede, mas que surge quando você está ocupado fazendo outra coisa com o coração inteiro.
Escrevendo essa news, me recordei da série do Ayrton Senna, na Netflix.
Senna dizia que não pilotava pra vencer. Ele pilotava pra se aproximar de algo que só ele sentia. Um tipo de sintonia absoluta entre corpo, máquina e pista.
A vitória, ele dizia, “era só o resultado de estar inteiro naquele momento”.
O troféu era epifenômeno; o real era o transe.
e a internet? e a raiva?
Essa lembrança me levou para um lugar simples: talvez a confiança seja só o cheiro do pão de quem está assando pão todo dia.
E o “sucesso”, essa palavra cansada nas redes sociais, talvez seja só fumaça de forno. Vapor. Perfume.
Sim, eu também vivo nela.
E aqui eu preciso te contar o meu pequeno desacordo com a maior indústria do nosso tempo.
As plataformas descobriram um truque antigo com uma embalagem brilhante: indignação vicia mais do que doçura.
É um design industrial da raiva. Uma máquina de outra dose que sempre cabe mais um clique.
E não, isso não é neutro. Quem constrói funis sabe o que faz. Se o anúncio perfeito vende tênis, o feed perfeito vende tempo.
O seu.
E o lucro aparece quando você troca o seu domingo por uma briga que nem é sua.
"sentir raiva" vende mais
Você sente raiva no Instagram, por exemplo?
Eu já senti. Muita. E descobri uma coisa que talvez te irrite um pouco: a raiva também é epifenômeno.
Ela não nasce do nada.
Ela é produzida, fabricada em série, reciclada por algoritmos que entenderam uma verdade desconfortável: nada prende mais atenção do que o que nos indigna.
As redes viraram padarias de raiva. O cheiro é bom, mas o pão é vazio.
E, sem perceber, a gente foi se acostumando a acordar e pedir mais um pedaço.
Ali, atrás do balcão, eu pensei nisso.
O algoritmo do café é outro: água, calor, moagem, tempo.
Se eu erro, a xícara devolve o erro.
Se acerto, alguém sorri.
Sem engajamento, sem performance.
Eu sirvo uma bebida e ganho um “obrigado” que não melhora KPI nenhum, mas melhora a sala inteira.
não acho que tecnologia seja vilã
Acho que virar refém do feed é. E eu não vou negociar a minha atenção com quem lucra quando eu perco a minha presença.
Depois de anos medindo tudo, escolhi um trabalho que mede de outro jeito.
Pergunta difícil. Talvez injusta comigo mesmo. Mas existe uma palavra mais precisa para descrever o que sinto hoje: assentado.
Como creme que assenta depois da vaporização do leite, eu senti o corpo dizer “agora sim”.
Estou consciente de que domínios técnicos virão com o tempo.
Latte art ainda me humilha, a lista de pastries ainda me testa, e o fluxo da manhã me lembra que eu sou aprendiz. Ótimo. Gosto da palavra aprendiz. Ela tem cheiro de chão limpo e mão ocupada.
e é aqui que você entra
1. Que parte da sua rotina renderia mais se você parasse de tentar controlar?
2. O que só vai fluir quando você parar de forçar?
3. Onde a sua confiança ainda depende de prática, não de pensamento nem de planejamento?
Sei que a vida nem sempre permite mudanças dramáticas, como a minha. Eu sei.
Mas quase sempre permite pequenos rituais de realidade: caminhar sem fone por 15min, preparar um café sem o celular por perto, escrever duas linhas à mão antes de abrir o e-mail.
Pequenas causas, bons epifenômenos.
Saí do turno com um sentimento específico, desses que ficam presos no bolso: alívio esperançoso.
Como quem fecha a loja e ainda sente o cheiro de pão no corredor.
Esse e-mail termina aqui.
O resto, é seu.
@paiva // @jppaiva._ // paiva.me