o que herdamos sem perceber
Semana passada, uma mulher ficou parada no balcão por mais tempo do que o normal.
O café dela já estava pronto, mas ela parecia longe... olhando o celular, depois a vitrine, depois o celular de novo.
Quando eu entreguei o copo, ela suspirou, meio sem perceber, e disse:
“Não sei se continuo onde estou ou se mudo de vez. Mas acho que não posso me dar esse luxo agora.”
Não era sobre café. Era sobre medo e sobre permissão.
Ela saiu e eu fiquei pensando: de onde vêm essas frases que a gente repete como se fossem verdades absolutas?
“Não adote meus preconceitos. Desenvolva os seus.”
O pai de Wynton Marsalis disse isso quando o filho quis tocar jazz como ele.
E eu pensei: quantos de nós seguimos a partitura dos nossos pais sem nunca testar o som das nossas próprias notas? No meu caso, a melodia era clara: responsabilidade, estabilidade, sucesso.
Cresci vendo minha mãe transformar uma paixão em um negócio e meu pai mudar de profissão com coragem e pragmatismo aos quase 40 anos.
De alguma forma, aprendi que “dar certo” significava não dar trabalho pra ninguém.
ser previsível, rentável, seguro
Até que, um dia, essa segurança começou a doer.
E eu percebi: estava tentando resolver uma equação que não era minha.
David Whyte cresceu achando que o mundo corporativo era o inimigo da arte. Até que conheceu um executivo que via poesia como ferramenta de pensamento.
E o preconceito dele, herdado, disfarçado de convicção, caiu por terra.
Quando decidi deixar o mundo da tecnologia pra trabalhar com café, foi um pouco isso.
Eu também achava que hospitalidade era o oposto de criação. Pura operação, eficiência e repetição. Depois de apenas dois turnos, entendi que é só outra forma de pensar com as mãos.
É curioso: quanto mais eu me afasto da minha antiga identidade, mais vejo o quanto ela ainda me controla. Não pelas escolhas em si, mas pelas justificativas.
A economista Nancy Andreasen descobriu que o cérebro é mais criativo quando está “em repouso”.
Quando parece não fazer nada, ele conecta o que importa.
Acho que é o que acontece quando a gente perde o emprego, muda de cidade ou começa do zero.
e de repente o silêncio vira laboratório
A gente descobre que boa parte dos nossos pensamentos não é original. São ecos.
Do medo dos pais.
Da pressa dos amigos.
Do julgamento das redes.
A economia da atenção vive de herança emocional: faz você sentir que está atrasado, mesmo quando está no caminho certo.
E pensar por conta própria virou ato de resistência.
do seu jeito
Morgan Housel, autor de A Psicologia do Dinheiro, só teve sucesso quando parou de escrever como os outros.
O primeiro rascunho do livro era prolixo, cheio de exemplos redundantes, até que ele rasgou tudo e escreveu do seu jeito: curto, direto, sincero.
O resultado? Oito milhões de cópias vendidas. Autenticidade dá trabalho, mas é lucrativa... até pro algoritmo.
Steve Jobs chamava de folclore o hábito de repetir métodos sem saber por quê.
Hoje o folclore é outro: o das fórmulas de sucesso que a internet vende como destino universal.
“Trabalhe com o que ama.”
“Encontre seu propósito.”
“Seja a melhor versão de si mesmo.”
Tudo bonito e, muitas vezes, herdado de contextos que não são os nossos.
uma geração, um padrão
Quase todo mundo tenta provar algo a alguém que já nem está olhando.
E talvez esse seja o maior obstáculo da vida adulta: perceber que, às vezes, o medo de decepcionar é só o eco de uma voz antiga e interna.
Hoje, atrás do balcão, servindo café, eu tento ouvir o barulho do vapor como antídoto pra esse ruído todo.
Estou aprendendo que recomeçar não é rejeitar o que veio antes. É refiná-lo.
Como Marsalis fez com o jazz do pai.
Como Whyte fez com sua poesia.
Como eu tento fazer com minha própria história.
Pense nisso da próxima vez que uma dúvida aparecer disfarçada de “prudência”.
Nem todo receio é sabedoria. Às vezes, é só medo herdado com boa reputação.
O que você acredita talvez nem seja seu. Mas o que você faz com isso, é.
Esse e-mail termina aqui. O resto, é seu.
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