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por Paiva

Nov 09 • 3 min read

é fácil amar o trabalho manual... até suar por ele


o ego morre primeiro

Ninguém te avisa que a cozinha de um café é brutal. Mais brutal que qualquer reunião de tech.

O barista do lado pesa o pó duas vezes, confere o fluxo, ajusta o moedor com o olhar de quem tá calibrando uma bomba.

Um sous-chef corta manteiga com a precisão de quem já abriu peito.

E ninguém fala. Só olhares e cutucadas discretas.

Errou a espuma do leite? Você sente o julgamento no ar.
Acertou a extração? Ninguém comemora.

parece glamour, quase um sonho


...quando você vê no Instagram.

Mas de perto, é quase monástico: precisão, ego contido e uma devoção silenciosa.

Hospitalidade não tem nada disso. Ela é uma arte marcial. E o dojo é uma bancada de inox.

Aqui, Janteloven não é conceito escandinavo. É regra tácita.

“Você não é especial.”
“Você não é melhor que nós.”
“Você não ensina, você repete.”

Eles abriram recentemente um coffee shop, e ver aquele time, que redefine gastronomia há duas décadas, aplicar o mesmo rigor a uma xícara de café foi quase espiritual.

Só precisão, calma e respeito máximo pelo processo.

Foi ali que descobri Janteloven, essa tal “Lei de Jante”.

O escritor dinamarquês Aksel Sandemose a descreveu em 1933, num romance sobre uma cidade fictícia chamada Jante, onde a harmonia só existia se todos lembrassem de que ninguém é melhor que ninguém.

Dessa história nasceram 10 mandamentos que moldaram a mentalidade escandinava e, de certa forma, a cultura do Noma também:

  1. Você não é especial.
  2. Você não é tão bom quanto nós.
  3. Você não é mais esperto.
  4. Você não é mais talentoso.
  5. Você não sabe mais do que os outros.
  6. Você não é mais importante.
  7. Você não é melhor em nada.
  8. Não ria de nós.
  9. Ninguém se importa tanto com você.
  10. E não pense que pode nos ensinar alguma coisa.


De fora, pode soar sufocante, mas, lá dentro, faz sentido.

No Noma, ninguém “assina” o prato. O crédito evapora junto com o vapor da panela.

O sabor é coletivo. O ego, descartável.

Quando o trabalho deixa de ser palco e volta a ser ofício.
Quando o aplauso cede espaço ao silêncio do foco.

E, curiosamente, isso me trouxe paz.

Depois de anos tentando otimizar performance em planilhas, comecei a encontrar sentido em apertar café moído com 30 libras de pressão.

Ali ninguém tenta parecer brilhante. Basta fazer direito.

mas tem um paradoxo aqui


Enquanto eu mergulho nesse mundo manual, de toque e textura, eu também sinto o digital puxando de volta.

A atenção virou moeda, e a gente vive num leilão silencioso.

Tudo que a gente posta já vem temperado com um toque de influencer, mesmo quando jura que é só “pra compartilhar”.

E sem perceber, o hobby que era refúgio vira vitrine. A presença vira performance. E o ritual, perfeccionismo... tóxico.

A gente não quer só fazer, quer fazer como se fosse o primeiro humano do mundo a fazer aquilo direito.

Esses dias, um barista mais experiente me disse:

“Perfeição não é quando tá tudo certo. É quando ninguém precisa falar nada.”

Soou quase religioso.

E eu pensei: talvez seja isso que a internet matou: o silêncio como prova de maestria.

digital vs cozinha

Na tecnologia, o reconhecimento é instantâneo: likes, metrics, dashboards.

Na cozinha, o feedback é o vapor acertando seu rosto.

E, de repente, Janteloven parece menos uma lei de repressão e mais uma prática espiritual.

Um lembrete de que você não precisa ser “melhor” pra pertencer.

Só presente.

Tem algo de bonito em errar o ponto da extração e, ainda assim, servir com dignidade.

Em refazer o shot não por medo do julgamento, mas por respeito à xícara e ao cliente.

O ego que grita no digital sussurra aqui.
E o som da máquina de espresso é quase um mantra.

café ensina mais que sprint

Hoje, acho que o café me ensina mais sobre criatividade do que qualquer sprint.

Porque, no fim, a criação é isso: calibrar, falhar, ajustar o moedor, e tentar de novo até que o resultado fale sozinho.

Sem press release. Sem “announce”. Só o som da água fervendo o silêncio: o intervalo entre o erro e a próxima tentativa.

No fim do turno, a equipe limpa em silêncio.

As luzes do balcão apagam uma a uma. O chão ainda quente, o cheiro de manteiga e café suspenso no ar. Ninguém posta nada. Ninguém precisa.

E talvez esse seja o milagre discreto que a internet não entende:
a beleza do trabalho que não pede testemunha.

Esse e-mail termina aqui.
O resto, é seu.

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